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Tag: leonardo medeiros

“Feliz Natal”, de Selton Mello. [download: filme]

Feliz NatalDepois de muito tempo sem ver a família, Caio chega em plena noite de Natal na casa do irmão de vida abastada, onde também encontram-se seus pais, que se separaram há muito tempo e não se suportam. Com sua visita, surgem velhos conflitos que há muito tempo ele e seus familiares não enfrentavam.
Apesar de muito conhecido pelo público pelo seu ótimo desempenho em papéis cômicos no cinema e na televisão e elogiado pelos críticos por conta de sua performance em obras dramáticas, a estréia do ator Selton Mello no comando do set de filmagem passou praticamente sem ser notada pelos cinemas e videolocadoras e, mesmo pela internet, poucos falaram sobre o filme. Os comentários neste meio mostram que “Feliz Natal” não chegou a estabelecer unanimidade de opinião, porém é certo que é mais fácil encontrar comentários menos favoráveis ao longa-metragem. Mas estas críticas, a meu ver, são oriundas de um equívoco, pois na verdade elas são resultado do estranhamento dos espectadores às opções artísticas e de estilo do diretor, consideravelmente diversas daquelas as quais grande parte do público vem sendo condicionado no cinema brasileiro dos últimos anos. Isso já se torna algo evidente ao se verificar que a escolha do elenco difere bastante da seleção comumente feita no novo cinema de massa brasileiro: o grupo é composto por figuras consideravelmente desconhecidas do público, por atores que não estão entre os nomes mais populares do país e por outros que já foram mais conhecidos, seja na televisão, teatro ou mesmo no cinema de grande escala – os que se enquadram nestes dois últimos perfis ganharam do diretor colocação em personagens cujas tonalidades são avessas ou desmontam aquelas que tradicionalmente vivem ou viveram, principalmente na televisão. A atitude tirou os atores da sua “zona de conforto” e incentivou performances que trafegam livremente entre o intimista e o visceral – caso da veterana Darlene Glória, que incorpora uma matrona carente e amargurada que passa o filme completamente encharcada em álcool.
No entanto, as críticas formuladas sobre o longa-metragem tem como origem e alvo principal a composição do seu roteiro e de sua montagem, ambos de co-autoria do diretor com Marcelo Sindicato e Marília Moraes, respectivamente. Comumente, os que não apreciaram o filme o tem taxado de extremamente arrastado e bastante pretensioso, percepção esta que, a bem da verdade, está correta – o que não procede é a qualificação de tais características como defeito, já que um dos grandes feitos do ator e diretor brasileiro reside justamente nestes elementos de seu filme. O roteiro, ao explorar a história de um filho pródigo que retorna momentaneamente à família e aos amigos, procura fazê-lo com uma abordagem mais universal e um olhar urbano, expondo assim os conflitos latentes, o constante remoer do passado para hastear a bandeira da felicidade perdida ou para apontar erros cometidos e a letargia do desagravo dos personagens com a situação de suas vidas apelando muito mais à emoção do que à palavra, o que leva muitos dos conflitos a não serem inteiramente expostos, residindo em grande parte no campo da emoção, seja ela explícita ou, em muitos casos, silenciosa e abafada. Por sua vez, a montagem, responsável por construir a narrativa em um andamento lento e por privilegiar a filmagem em enquadramentos estudados e cuidadosamente planejados e em closes e planos desfocados e deslocados, tem por objetivo reforçar o caráter de fragmentação de sentimentos injetado pelo roteiro, ampliando e aprofundando em camadas não-verbais a exposição destes, de dores e de traumas que os personagens procuram ocultar ou que não conseguem exprimir. É na conjugação do estilo destes dois elementos de composição do longa-metragem que nasce o caráter enormemente poético do filme, o qual deu vazão ao rotúlo de pretensioso. A questão é que, por si só, a pretensão não é sinônimo de defeito, a não ser que ela não corresponda as expectativas. Porém, esse não é o caso de “Feliz Natal”, pois Selton não pasteuriza referências estético-narrativas (consideradas pela maioria como adotadas da cineasta argentina Lucrécia Martel, mas que a meu ver tem muito de Luiz Fernando Carvalho, um pouco de Júlio Bressane e episódios de Krzysztof Kieslowski, já que há parentesco de sangue entre a sequência de epifania-delírio que conjuga e expõe a fragilidade de todos os personagens ao som de uma espécie de tango consternado em “Feliz Natal” e a sequência de mesmo tipo que fecha “A Liberdade é Azul” ao som de “Song For the Unification of Europe”, do brilhante Zbigniew Preisner), ele as assimila à composição do seu próprio estilo, sem dúvidas organizado sob esta sensorialidade do esfacelamento e fragmentação emocionais e sob um amargor obscuro e abstrato, este último bastante auxiliado pela excepcional fotografia de Lula Carvalho e pela trilha sonora irretocável de Plínio Profeta. É, portanto, um genuíno trabalho autoral. E, por afastar-se tanto da idéia de cinema nacional que vem sendo construída nos últimos anos e conquistou simpatia do público e da mídia com thrillers impactantes e violentos ou comédias ancoradas em argumentos batidos, quanto do clássico drama regionalista que chafurda as mazelas sociais brasileiras, e é por isso prontamente classificado como a verdadeira identidade do cinema do país, a estréia do diretor talvez seja a mais interessante dos últimos anos no Brasil, chegando com a promessa de reforçar o pequeno e menos popular time de diretores com aspirações outras na sétima arte do país. Fico, então, na torcida e aguardo de outros filmes destes e de novos diretores, pois a diversidade de estilos e olhares é que é a verdadeira identidade da cultura brasileira.

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“Budapeste”, de Walter Carvalho.

BudapesteJosé Costa é um ghost-writer, um escritor que põe seu talento a disposição de quem deseja ter um livro publicado, delegando a autoria de sua própria obra para estas pessoas e relegando-se ao anonimato. Casado por conformidade, é quando José decide ir à Europa para uma convenção que ele conhece Budapeste, cidade em que sua vida ganharia novos contornos.
Ao finalizar o breve discurso que fez antes da exibição de seu novo longa-metragem no FAM 2009, Walter Carvalho dirigiu-se à platéia dizendo, “vou pedir uma gentileza: gostem do filme”. O problema, porém, é que eu não poderei ser gentil.
Walter, muitos devem saber, é um dos diretores de fotografia mais requisitados do cinema brasileiro, com um trabalho impecável de iluminação. E justamente aí está o elemento que problematizou todo o seu trabalho como diretor de “Budapeste”: é a partir do seu olhar treinado para processar incessantemente o belo que existe em (quase) tudo que nascem as problemáticas visíveis no longa-metragem.
Por uma enorme ironia, é a fotografia do longa-metragem que se percebe como problema mais notável de “Budapeste”. Executada por Lula Carvalho, ela traz à tona a elegante antiguidade da capital da Hungria, tingindo-a em matizes poéticos, porém, certamente seguindo as diretrizes de Carvalho, sua fotografia também causa cansaço por retratar a nudez feminina do modo mais cliché possível, num amontoado de sombras e nuances óbvias para denotar a beleza, sempre sedutora para qualquer fotógrafo, das curvas e detalhes do corpo das mulheres. Isso, somado a forma demasiadamente contemplativa com o que o diretor filma o nú de suas atrizes e a trilha descaradamente óbvia, que tenta ampliar ainda mais o encanto feminino, soa tão excessivo que acaba resultando em um amontoado de cenas de sexo cuja definição mais imediata é o brega.
Por falar em trilha, ela se configura como outro problema do longa-metragem – tanto na sua própria composição como no procedimento de utilização adotado. Embora alguns momentos detenham uma beleza consistente extraída de arranjos sutis, em outras a composição se apresenta com uma harmonia tão destoante que fica mais parecendo uma sintetização barata para sonorizar uma novela qualquer do que uma peça orquestral feita para o cinema. E a insistência em utilizá-la para banhar qualquer cena em contornos dramáticos ou efusivos não poucas vezes resulta na mais pura desarmonia audiovisual – é por isso que, por exemplo, metade do brilho da cena da estátua de Lênin no rio Tâmisa é destruída.
Estes, porém, são componentes isolados, estorvos em sequências que não necessariamente são um equívoco. Desastre mesmo foi o cometido por Walter Carvalho na sequência do sonho, parte do epílogo da trama. Ao conceber a cena o diretor conseguiu obter o maior feito do seu filme: reunir, em uma única sequência, todos os elementos problemáticos de “Budapeste”, transformando em equívoco inclusive o que não era até então. Trilha, fotografia, direção de atores, enquadramentos de câmera, tudo foi trabalhado de forma a resultar na sequência mais embaraçosa do filme, convertendo o delírio, que com uma atmosfera sombria poderia ganhar impacto e causar calafrios, em um teatrinho kitsch da pior espécie – do jeito que está, encoberto por uma trilha óbvia, uma fotografia tosca e uma composição descaradamente farsesca, a único impacto garantido é o de causar gargalhadas constrangidas.
Mas é bom avisar que as falhas não se contentam em assolar os aspectos técnicos do filme – o roteiro adaptado do livro de Chico Buarque pela roteirista e produtora Rita Buzzar também partilha deste mérito indesejável, já que a adaptação não sabe como fundamentar as atitudes de seu protagonista – por isso é que fica difícil compreender porque Costa se revolta ao cometer o mesmo erro duas vezes, quando vê entregue à outro o sucesso de um livro cuja autoria relegou – e não consegue equilibrar suas idiossincrasias comportamentais – tornando sua defesa apaixonada pela integridade da literatura, que já soava excessivamente diletante, em algo grotesco, uma vez que ele próprio contribuiu contra ela.
O livro mais celebrado de Chico Buarque merecia uma adaptação menos afeita a tantas obviedades, incongruências e equívocos que acumulam-se em um painel final desastroso. Tivesse Walter Carvalho, ao ocupar a cadeira de diretor, se livrado dos paradigmas do belo incutidos em seu olhar pelo hábito da fotografia e o resultado teria sido bem mais elegante e consistente – aí, quem sabe, ele não precisaria ter que mendigar a gentileza do público em gostar de seu filme.

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