Coisa de cinco minutos eu estava entrando no Centrosul, local da apresentação do músico Damien Rice na capital de Santa Catarina. Logo na portaria recebi uma discreta [ironia] pulseira laranja, que identificaria meu setor dentro do espaço utilizado para o show. Não querendo fazer hora, entrei logo no salão, dividido em três setores por barras metálicas. Sentei-me, lá pelas 20:30hs, na segunda fileira e fiquei aguardando. Depois de alguns minutos dando uma geral no local, saquei meu iPod Touch pra ouvir música enquanto aguardava o show e descobri que alguém, inadvertidamente ou não, deixou a rede wi-fi do local sem criptografia. Nada melhor do que esperar um show ouvindo música e navegando na internet ao mesmo tempo. E eu tive que esperar um tempinho bem razoável – o show atrasou mais de meia hora.
E era pouco mais de 21:30hs quando Damien Rice entrou no auditório pelo lado direito e subiu ao palco acompanhado somente de seu violão. Depois de cerca de duas músicas, o cara começou a conversar com a platéia, e daí pra frente não parou mais. Cada música que Damien tocava era precedida por um comentário, uma história de como a canção foi criada ou uma impressão qualquer, como da sua vinda ao Brasil ou de sua visão sobre as relações humanas. A cada vez que Damien parava para expor algo na sua fala calma, pausada e plácida, eu descobria que ele é o exato inverso do que sua canções dão a entender: artista de composições, em sua maioria, tristes e sofridas, Damien Rice se mostrou um homem dotado de um humor discreto e de ironias finas, muito distante dos comentários e histórias expressadas como certezas e opiniões aborrecidas por uma parcela considerável dos artistas. Com isso, a platéia não apenas se emocionava com as canções do artista, mas era constantemente estimulada pelas suas histórias e “causos”.
Depois de um set de cerca de seis músicas, Damien Rice anunciou a entrada de Seu Jorge, com mais uma história sobre isso, claro, e aproveitou para fazer seu intervalo. E ele não foi curto: o cantor e compositor brasileiro só saiu do palco depois de cantar seis músicas, entre composições suas e de outros artistas brasileiros. O público foi educado e se comportou bem, aproveitando a apresentação de Seu Jorge e agradecendo com entusiasmo cada música sua. Mas o público estava mesmo ali para ver Damien Rice, e não havia como não notar a ansiedade silenciosa dos espectadores com relação ao retorno do cantor irlandês.
E quando Damien surgiu novamente, sua volta não foi sem impacto. O cantor subiu ao palco ainda ocupado por Seu Jorge e chamou a parcela da platéia mais à frente para lhe fazer companhia. Obviamente que todos aqueles que se encontravam nos setores bloqueados se mostraram um tanto frustrados, mas a maioria se conformou com o situação e aproveitou o espetáculo que se formava à sua frente: rodeado por mais de trinta pessoas sentadas ao seu redor, Damien Rice começou a cantar “Volcano” e, a certa altura, resolveu interromper seu canto para distribuir entre os novos ocupantes do seu palco e o restante da platéia a execução do backing vocal da faixa, orientando homens, mulheres e a platéia ao fundo sobre como deveriam acompanhá-lo – foi um momento de enorme descontração, uma espécie de oficina de canto improvisada em que todos no auditório sentiam enorme proximidade com o artista irlândes. Mas essa surpreendente intimidade de Damien com a platéia não acabou por aqui.
Depois de mais essa demonstração de simpatia, Damien saiu do palco brevemente apenas para retornar para cantar “Cannonball” de um modo surpreendente: a princípio confundido pela platéia como um deslize técnico, Damien executou à canção sem o apoio da aparelhagem de som, fazendo ecoar no salão apenas a extensão natural de seu vocal e do seu violão. A platéia logo entendeu e manteve-se em silêncio absoluto para aproveitar ainda mais esse momento ainda mais intimista do artista com seu público.
E o cantor europeu resolveu guardar sua canção mais conhecida para os momentos finais. Primeiro cantada por Seu Jorge, na sua versão em parceria com a brasileira Ana Carolina, Damien Rice, que estava sentado no palco assistindo o colega cantando, levantou-se e deixou a platéia vidrada com a execução original de “The Blower’s Daughter”.
E quando eu estava achando que o show já tinha chegado ao seu fim, o irlândes volta-se para a platéia, ainda anestesiada pelas sensações despertadas por uma das suas músicas mais famosas, e pede que aguardem o palco ser devidamente equipado para sua última canção. Logo, três cadeiras e uma grande mesa, sobre a qual se encontravam taças e garrafas de vinho, estavam sobre o palco. Em duas das cadeiras sentaram-se Seu Jorge e uma amiga irlandesa de Damien que falava português razoavelmente, incentivadora de uma ONG que se instalava na cidade e para a qual toda a renda do show seria revertida – diga-se de passagem, motivo maior da vinda de Damien para o Brasil. Personagens em seus postos, o cantor irlandês iniciou a “dramatização” da história da música “Cheers Darlin”: enquanto ele desenrolava o novelo do “conto”, sobre um homem e uma mulher batendo papo em um bar para matar o tempo a hora de ir embora, Seu Jorge e a irlandesa se revezavam na tradução do que Damien contava, bem como interpretavam os papéis definidos na canção – e, assim sendo, as garrafas de vinho foram sendo esvaziadas pouco a pouco pelos “atores” e pelo narrador da história, já que o consumo da iguaria é parte essencial da história contada. E os três se esbaldaram: logo que era virado uma taça, Damien voltava-se para a platéia e inventava na história mais um motivo para um brinde, e la se iam mais três taças de vinho. Foram umas cinco rodadas ou mais, até que Damien, para delírio da platéia, ofereceu uma interpretação fabulosa de “Cheers Darlin”, repleta de emoção, ironia e com direito a uma impagável simulação de embriaguez e inconformidade – foi uma perfomance tão impecável que depois de muito aplaudir Damien e seus “assistentes de palco” o público esvaziou o auditório visivelmente extasiado, sem muito falar mas com enormes sorrisos expressando a enorme satisfação de ter testemunhado uma das noites mais inspiradas de na carreira de Damien Rice.